Imagine se, a partir de amanhã, construir uma fábrica, abrir uma estrada ou instalar um empreendimento passasse a depender apenas de uma autodeclaração – como se uma pessoa se autodeclarasse médica, sem ter estudado para exercer essa função. Parece conveniente para quem quer ser médico, mas também perigoso para toda a população. É esse o cenário que o Projeto de Lei 2159/2021, conhecido como PL da Devastação, pode inaugurar.
Neste artigo, vamos explorar o que está por trás desse apelido impactante, por que o PL gera tanta controvérsia e como ele pode afetar diretamente empresários, produtores rurais, investidores e a própria natureza. Vamos explicar os pontos principais, traçar a trajetória do licenciamento ambiental no Brasil, apresentar projeções para o futuro e considerar diferentes pontos de vista – inclusive os favoráveis ao projeto.
A função do Licenciamento
O licenciamento é como um filtro: separa os projetos viáveis daqueles que podem gerar impactos ambientais inaceitáveis. Ele não é um obstáculo ao progresso, mas um freio necessário à irresponsabilidade. Assim como não deixamos qualquer motorista dirigir sem habilitação, não deveríamos permitir qualquer empreendimento funcionar sem avaliação técnica.
Desastres como o rompimento da barragem de Mariana (2015) e Brumadinho (2019) são exemplos trágicos do que pode acontecer quando o controle ambiental falha. Em ambos os casos, havia licenças ambientais, mas a fiscalização foi insuficiente. O PL, ao reduzir ainda mais o poder de análise e controle dos órgãos ambientais, pode aumentar a frequência e gravidade desses eventos.
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O que é o PL da Devastação?
O PL 2159/2021 é uma proposta de nova lei geral do licenciamento ambiental que tramita no Congresso Nacional. Seu objetivo declarado é “desburocratizar” e “tornar mais eficiente” o processo de licenciamento ambiental no Brasil.
O licenciamento ambiental, tal como conhecemos hoje, começou a ganhar força com a Política Nacional do Meio Ambiente, de 1981, e foi regulamentado nas décadas seguintes. Com o tempo, tornou-se um instrumento essencial para conciliar desenvolvimento econômico com proteção ambiental.
Hoje, para um empreendimento de considerável impacto ambiental obter uma licença ambiental, é necessário apresentar um ou mais estudos ambientais – como o Estudo de Impacto Ambiental (EIA), o Relatório de Impacto Ambiental (RIMA), o Plano Básico Ambiental (PBA), o Relatório de Controle Ambiental (RCA), o Plano de Controle Ambiental (PCA) e o Relatório de Caracterização do Empreendimento (RCE) – que são analisados por órgãos técnicos. Na esfera federal essa análise é realizada pelo IBAMA.
O PL propõe que, em muitos casos, isso deixe de ser obrigatório. O empreendedor poderá autodeclarar, por conta própria, que seu empreendimento não causará danos ambientais significativos, apresentando apenas o RCE
O Projeto de Lei 2159/2021 foi apresentado originalmente em 2004 na forma do PL 3729/2004. Ou seja, a proposta tem mais de 20 anos de tramitação em diferentes versões e passou por várias alterações e relatorias.
Apenas empreendimento classificados como de alto risco ambiental continuariam sujeitos a uma análise mais detalhada. Mas os critérios para essa classificação não são claros e poderiam variar de acordo com a região, o bioma e tipo de empreendimento. Projetos rodoviários, por exemplo, poderiam ser dispensados de licenciamento em diversos cenários – mesmo quando situados próximos a nascentes, áreas de recarga hídrica ou comunidades tradicionais.
Na prática, o PL pode abrir margem para retrocessos sem precedentes na proteção do meio ambiente.
Licença por Adesão e Compromisso (LAC)
A Licença por Adesão e Compromisso (LAC) é uma modalidade de licenciamento ambiental mais simplificada, na qual o empreendedor declara que atende aos critérios pré-estabelecidos pelo órgão ambiental e, com base nisso, obtém a licença de forma automática, sem análise técnica ou vistoria prévia. Ela reduz etapas e encurta prazos, sendo útil em casos de baixo impacto, se bem regulamentada.
Hoje a LAC já é utilizada por diversos órgão ambientais estaduais, como no Paraná pelo Instituo Água e Terra (IAT), por exemplo. Nesse cenário são autorizados a instalação e a operação de atividade ou empreendimento, de pequeno potencial de impacto ambiental.
No âmbito estadual esse tipo de licença já é preocupante. Porém, no âmbito nacional (IBAMA) a escala das consequências é muito maior pois é nessa esfera em que ocorrem os licenciamentos de grande impacto ambiental, como serviços de obras de ampliação e pavimentação.
Requisitos e Etapas da LAC
São condições cumulativas para que o licenciamento ocorra na modalidade por adesão e compromisso:
- A atividade ou o empreendimento não ser potencialmente causador de significativa degradação do meio ambiente.
- Serem previamente conhecidos:
- as características gerais da região de implantação;
- as condições de instalação e de operação da atividade ou do empreendimento;
- os impactos ambientais da tipologia da atividade ou do empreendimento;
- as medidas de controle ambiental necessárias.
- Não ocorrer supressão de vegetação nativa.
Para a emissão da LAC, o único estudo solicitado é a apresentação do Relatório de Caracterização do Empreendimento (RCE). Mesmo assim, a análise pela autoridade licenciadora será por amostragem, inclusive a realização de vistorias também por amostragem.
Ou seja, apenas alguns empreendimentos serão selecionados para serem analisados. No entanto, os textos não fornecem uma definição específica ou detalhes sobre como essa “amostragem” deve ser feita (quais critérios serão usados para selecionar os empreendimentos analisados).
Responsabilidade Técnica
Mesmo sendo uma licença mais simplificada e automática, a solicitação da LAC exige que o empreendedor tenha um responsável técnico habilitado (geralmente um engenheiro, biólogo, geólogo, agrônomo etc., com registro no conselho de classe – CREA ou CRBio, por exemplo).
Esse profissional deve atestar que o empreendimento cumpre todos os critérios técnicos e ambientais exigidos para o uso da LAC. Mas não isenta o empreendedor da responsabilidade técnica. Tanto o empreendedor quanto o responsável técnico assumem a responsabilidade civil e criminal em caso de informações falsas ou omissas, nos termos da legislação ambiental e do Código de Ética Profissional.
A visão de quem apoia
De início, muitos empresários podem ver o PL como uma simplificação bem-vinda. Menos burocracia, mais agilidade e redução de custos. Em tempos de crise econômica e pressão por crescimento, a promessa de facilitar novos empreendimentos soa atraente.
Os defensores argumentam que:
- O atual sistema é moroso e engessado;
- Pequenos empreendedores sofrem desproporcionalmente com as exigências;
- Há muita subjetividade e insegurança jurídica nos licenciamentos;
- O excesso de exigências pode ser usado para corrupção ou favorecimento político.
O grande problema
A LAC se torna preocupante pois abre uma grande brecha para fraudes e aumenta os riscos de erros, por conta de alguns pontos, como:
- Redução drastica da análise técnica por parte dos órgãos ambientais, transferindo a responsabilidade quase integralmente ao empreendedor e ao seu Responsável Técnico;
- Termos não são bem definidos, tendem a variar muito dependendo do bioma, das características locais e do ramo da atividade em questão;
Consequências futuras
A aprovação do PL pode levar a efeitos em catastróficos e irreversíveis, como:
Redução da Participação Pública
A proposta limita a obrigatoriedade de audiências públicas e consultas à sociedade civil em processos de licenciamento. Isso enfraquece a transparência e a participação democrática, especialmente de comunidades tradicionais e povos indígenas que podem ser diretamente afetados por empreendimentos.
Enfraquecimento dos Órgãos Ambientais
O PL reduz o poder de órgãos ambientais estaduais e federais na fiscalização e aprovação de licenças. Com menos autonomia e recursos, esses órgãos podem ter dificuldades em monitorar e controlar atividades potencialmente poluidoras.
Processos judiciais e multas ambientais futuras
A falsa ideia de agilidade e desburocratização esconde um risco jurídico elevado: empreendimentos realizados sem base técnica ou autorização ambiental podem ser alvos de ações civis públicas, embargos e multas milionárias. O que inicialmente parece economia de tempo e dinheiro pode resultar em paralisações, perda de credibilidade e responsabilidades legais difíceis de reverter.
ESG e Mercados Externos
Exportadores brasileiros já enfrentam barreiras comerciais por falta de comprovação de origem sustentável. Ignorar o licenciamento é ignorar também as exigências globais. As empresas brasileiras podem ser excluídas de cadeias globais de valor.
Governos e consumidores estão cada vez mais atentos aos compromissos com o meio ambiente. Com o PL, o Brasil pode se transformar em um país de risco ambiental, afastando investidores e boicotando exportações, especialmente de mercados internacionais mais exigentes, como o europeu.
Reprovação de financiamentos
Bancos como o BNDES, o Banco do Brasil e instituições multilaterais exigem estudos e licenças ambientais como pré-requisito para financiamentos. A flexibilização pode se tornar uma armadilha para empresas que optarem pelo caminho “mais fácil”.
Reações da Sociedade
Ambientalistas, cientistas, juristas, indígenas e entidades internacionais criticam duramente o PL. Até o Ministério Público Federal já se manifestou alertando para inconstitucionalidades e prejuízos à biodiversidade.
Agravamento Climático e Comprometimento das Metas Climáticas
Ao facilitar intervenções em áreas naturais sem análise técnica prévia, essa proposta incentiva o desmatamento, a degradação de biomas e a emissão de gases de efeito estufa — principalmente pelo corte raso de vegetação nativa e mudanças no uso do solo. Sem licenciamento, perde-se a oportunidade de exigir medidas compensatórias ou planos de redução de impacto climático.
A curto prazo pode parecer vantajoso, mas os danos acumulados se voltam contra todos, sob a forma de secas mais severas, enchentes, perda de produtividade agrícola e aumento das temperaturas. A falta de controle ambiental hoje compromete o equilíbrio climático das futuras gerações.
A facilitação dessas atividades podem ainda comprometer os compromissos internacionais do Brasil em relação às mudanças climáticas, como os acordos firmados na Conferência das Partes (COP).
Recursos Hídricos
- Redução da proteção de nascentes, mananciais e corpos d’água ao permitir atividades sem licenciamento próximo a áreas sensíveis.
- Aumento da contaminação de rios e aquíferos, especialmente por agrotóxicos, dejetos agropecuários e resíduos industriais que não passariam por análise técnica prévia.
- Comprometimento do abastecimento humano e irrigação, afetando cidades, comunidades e atividades agrícolas.
- Aumento do assoreamento de cursos d’água, pela supressão vegetal e falta de exigência de controle de erosão.
Qualidade do Solo
- Degradação do solo pela intensificação de atividades agropecuárias e minerárias sem estudos de impacto, o que favorece erosão, compactação e perda de fertilidade.
- Contaminação por produtos químicos e resíduos, já que o controle prévio deixaria de ser exigido em muitos casos.
- Perda de capacidade produtiva a longo prazo, dificultando a regeneração natural e afetando a segurança alimentar.
Qualidade do Ar
- Aumento de emissões atmosféricas por parte de indústrias, desmatamento e queimadas facilitadas pelo PL.
- Intensificação das mudanças climáticas locais e globais, com maior liberação de gases de efeito estufa (como CO₂ e metano).
- Prejuízos à saúde humana, especialmente em áreas urbanas e rurais próximas a empreendimentos poluentes.
Fauna
- Destruição de habitats por conta de obras e empreendimentos em inadequação com as normas ambientais, o que pode levar ao deslocamento, estresse ou extinção local de espécies.
- Aumento de atropelamentos e conflitos com a fauna, especialmente em obras de infraestrutura (estradas, ferrovias, barragens) sem exigência de medidas mitigadoras.
- Perda de corredores ecológicos, que são essenciais para migração e reprodução de diversas espécies.
Flora
- Supressão de vegetação nativa sem compensação adequada.
- Risco maior de perda de espécies endêmicas e ameaçadas, que dependem de áreas protegidas e conectadas.
- Aumento da fragmentação florestal, dificultando a regeneração natural e o equilíbrio dos ecossistemas.
Biodiversidade
- Erosão genética, com a eliminação de espécies antes mesmo de serem estudadas ou catalogadas, principalmente na região Amazônica.
- Colapso de cadeias ecológicas, afetando desde polinizadores até grandes predadores, com efeitos diretos na produção agrícola e na estabilidade dos ecossistemas.
- Diminuição dos serviços ecossistêmicos, como regulação do clima, controle biológico de pragas e purificação da água e do ar.
Serviços Ambientais e Ecossistêmicos
- Comprometimento da regulação climática e do ciclo da água, por perda de cobertura vegetal e fragmentação de ecossistemas.
- Redução na capacidade de recarga de aquíferos, com consequências para a disponibilidade de água potável.
- Desestabilização de microclimas, afetando desde pequenas propriedades até grandes regiões agrícolas.
Risco de Aumento de Desastres Ambientais
Com a flexibilização das exigências para o licenciamento, há um risco maior de ocorrência de desastres ambientais, como rompimentos de barragens, desmoronamentos, contaminação de recursos hídricos, devido à falta de análises técnicas adequadas e medidas preventivas.
Risco de Queimadas e Incêndios Florestais
- A redução do controle e da fiscalização prévia pode permitir a expansão de atividades que utilizam o fogo sem planejamento técnico.
- A supressão de vegetação nativa sem análise de risco ambiental agrava a possibilidade de incêndios incontroláveis.
Segurança Alimentar
- Contaminação de lavouras por resíduos tóxicos e perda da fertilidade do solo.
- Redução de polinizadores naturais, como abelhas, que são cruciais para a produtividade agrícola.
- Perda da diversidade genética agrícola, especialmente em comunidades tradicionais.
Patrimônio Natural e Cultural
- Destruição de áreas protegidas e territórios de comunidades tradicionais, como indígenas, quilombolas e ribeirinhos.
- Perda de paisagens naturais com valor turístico, científico e histórico.
- Violação de direitos socioambientais, especialmente em comunidades vulneráveis que dependem diretamente dos recursos naturais.
Ordenamento Territorial
- Incentivo à ocupação desordenada e ao avanço de empreendimentos em áreas de risco, como encostas, margens de rios e zonas alagáveis.
- Conflitos fundiários e ambientais, pela sobreposição de interesses econômicos sem mediação ambiental.
Alternativas Inteligentes ao Retrocesso
Em vez de eliminar o licenciamento, o ideal seria modernizá-lo. Algumas propostas viáveis:
- Criação de um licenciamento digital nacional, padronizado e com prazos claros;
- Classificação mais precisa de riscos por tipologia de atividade e bioma;
- Investimento em capacitação técnica dos órgãos ambientais;
- Contratação de funcionários públicos para agilizar os estudos e análises.
O caminho não precisa ser entre o caos e a paralisia. Há um meio-termo possível: mais eficiência sem abrir mão da precaução.
Simples Não É Sinônimo de Seguro
O PL da Devastação simplifica o licenciamento ambiental, mas à custa de desproteger recursos naturais essenciais à vida e à economia. Empresários conscientes devem lembrar que sustentabilidade não é apenas uma exigência legal ou reputacional – é uma estratégia de sobrevivência.
Antes de apoiar um projeto que promete rapidez, é preciso perguntar: estamos construindo um caminho sólido ou apenas um atalho para o colapso?
FAQ – Perguntas Frequentes
O que é PL da Devastação?
É o apelido dado ao Projeto de Lei 2159/2021, que propõe mudanças significativas no licenciamento ambiental brasileiro. O ponto principal desse PL é a facilitação para a emissão da licença ambiental, o que tende a gerar impactos ambientais e sociais preocupantes.
Qual o objetivo do PL da Devastação?
Simplificar o processo de licenciamento ambiental, substituindo estudos técnicos por autodeclarações.
Quais são os riscos do PL da Devastação?
Aumento de desastres ambientais, piora na qualidade dos recursos ambientais, insegurança jurídica, prejuízo à imagem do país e exclusão de mercados internacionais.
Quais são os benefícios do PL da Devastação?
Redução de burocracia, mais agilidade para empreendedores e menor custo operacional no curto prazo.
A PL da Devastação já foi aprovada?
A proposta já passou no Senado e aguarda votação na Câmara dos Deputados.